segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Silvério Pessoa - Cabeça Elétrica, Coração Acústico (2005)


Na partitura da música pernambucana faltava uma nota: Silvério Pessoa, o galego inquieto de Carpina que ganhou o mundo para mostrar as faces poliédricas dos ritmos nordestinos (forró, baião, xote, coco e ciranda) e ser o ponto de interseção entre as várias linguagens que fervem no caldeirão sonoro que um dia entrou em nova ebulição, com uma força vulcânica da bobônica - a explosão do movimento mangue.
Silvério é o elo entre gerações, cirandeiro que estende as mãos para fechar a roda, no movimento das ondas do mar que leva e traz tradição e modernidade musical banhadas pelas águas do rock’n’roll. Mesmo com uma sonoridade própria e distinta das bandas seminais do movimento, Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S/A, e de outras que despontaram naquele momento, tão díspares quanto Otto, Devotos, Faces do Subúrbio, Eddie, Jorge Cabeleira, Bonsucesso Samba Clube e Mestre Ambrósio, para citar algumas, é Silvério este elo que faltava para unir o outro lado da corrente, onde estão Lenine, Antônio Nóbrega e Alceu Valença. Sua inquietação o aproxima também dos não menos inquietos China, Mombojó e o maestro Spok.
É um Silvério de corpo e alma musical que se revela íntegro no DVD Cabeça elétrica, coração acústico, gravado de uma lapada só no Teatro de Santa Isabel, em novembro de 2005, com uma banda azeitada, experimentada de tantas andanças pelo Brasil, pela Europa e até a Ásia, num movimento migratório de trocas de influências múltiplas – o sentido maior do projeto do disco. O mundo de Silvério também é cibernético. O coração acústico pulsa ao som de percussão (Luís Carlos), sanfona e escaleta (André Julião). Pulsa na batida da bateria e da zabumba (Wilson Farias). Pulsa na vibração das cordas do baixo (Israel Silva), do violão e da viola de 10 (Renato Bandeira), da guitarra, do cavaquinho e da viola de 12 (Yuri Queiroga), enquanto a cabeça elétrica de Silvério viaja siderada, comandando efeitos de vocais via Air FX e programações eletrônicas pré-gravadas. Durante a apresentação do show, as projeções de Yellow e Moacir, do Re:combo, pontuam, acentuam, comentam, contrastam com a poética das letras de Silvério.
O DVD abre com imagens de rebanho de cabras, que imediatamente remete ao Brasil rural a que se refere o armorial Ariano Suassuna. É lá onde reside a tradição, citada nas vinhetas de abertura Coco-rojão-brasileirão, com Zé Vicente da Paraíba; Mourão voltado, com Zé Vicente e Passarinho do Norte. Mas Silvério não é um ortodoxo. Muito pelo contrário. Por isso ele faz mixagem da tradição com o futurismo de Os bodes do espaço. “É tudo misturado mesmo”, como diz Seu Mané da Granja, onde Silvério gravou o berrar dos bodes. E depois no canto da farinhada das mulheres de Porto Real do Colégio (Alagoas). Vêem-se imagens do Recife – apontando para o urbano. Mesclam-se cenas de praias, idílicas, paradisíacas. O velho e o novo, o moderno e o antigo. Nada mais pernambucano.
O roteiro do show não segue ao pé da risca o CD Cabeça elétrica, coração acústico, mas a linha que o costura está bem cerzida. E a inclusão de Seu Antônio (Pra Gilberto Gil) logo no início estabelece os princípios estéticos do trabalho do galego. É um xote moderno, com programação, sanfona, zabumba e viola de 10 e o naipe de A Trombonada de Nilsinho Amarante (que cortina musical da gota, rapaz!). É para o camarada pegar a companheira e sair dançando. E o vocalize de Silvério imediatamente remete a Alceu Valença. Bela homenagem. Aliás, foi em um show no Teatro Santa Isabel, de Alceu Valença, que voltava da Europa, que a ficha caiu para Silvério. E eis que o homem estava lá, expressivo, suando, sorridente, gravando o seu primeiro DVD.
Cipó de goiabeira vem logo em seguida, nos leva direto às brincadeiras de infância no quintal de casa ou no meio da rua. A sonoridade agreste da viola de 10 ponteia a canção. A festança segue com as crônicas rurais-urbanas. Em Sambada e massapé, Silvério volta a falar de cana-de-açúcar, os velhos engenhos, e também da casa de farinha, do plantio da mandioca e, seu lado perverso, o trabalho infantil que não deixa o menino estudar. É um forró gostoso. As cenas mesclam casa de farinha, corrida no canavial, treminhão levando cana para a usina.
Nas águas do mar é uma bela ciranda de Silvério. Lenine, que fez participação especial no disco, ficaria orgulhoso de ter composto a música. Sensibilidade à flor da pele. É canto de oferenda e comunhão. Até parece que Silvério e sua comitiva adentrou o mar para desembarcar na Europa, pois logo em seguida estamos em Paris, frenética, diante da Torre Eiffel (que ele compara com a chaminé da Fábrica Tacaruna). São os retirantes musicais em escala migratória. Temos cena do Mercado de Pigalle, a banda passeando pela Bastilha e tocando no Festival de La Rochele. É nestas horas, diante do público estrangeiro extasiado que dá vontade de encher os pulmões para cantar: “Sou de Pernambuco sou/ Das brenhas do interior/ Estou por aqui, estou pra ser cantados/ Sou de Pernambuco sou/ Dos cafundó do mundo/ Estou por aqui estou/ Sou trabalhador”, como Silvério faz em Nas terras da gente, um forró tradicional que se torna psicodélico.
Silvério nunca escondeu suas influências. Muito pelo contrário, faz questão de reverenciá-las. E a homenagem é feita na transição da primeira para a segunda parte do show, quando ele canta um pot-pourri de “três gênios do forró”, como assinala o crítico e pesquisador José Teles – Rosil Cavalcanti (Lei da compensação), Luiz “Boquinha” de França (É o Cosme e Damião) e Jacinto Silva (Carreiro Novo).
E a viagem da ave música migratória nordestina regional e cibernética prossegue em Eu vi a máquina voadora, com vinheta de abertura de Viajando no espaço, do repentista aloprado Zé Vicente da Paraíba. A letra de Bráulio Tavares e Silvério é um primor de poesia nordestina ponteada pela viola.
A poesia lírica de Silvério revela intensidade em Disposto a tudo e Poesia urbana. É celebração da vida e do amor. Ele é capaz até de fazer chover e dominar planetas para realizar esse desejo, num forrozinho gostoso que desemboca em rock, em Disposto a tudo. Já em Poesia urbana, tome xote, bem marcado, no melhor estilo.Silvério evoca o início da carreira e a parceira com o Cascabulho, em Vendedor de amendoim, que ganhou um novo arranjo, e Coco de chegada (parceria com Herbert Lucena), nas qual entram trechos incidentais de A mulher de Mané Amaro (Déo do Bião) e Poeira no terreiro (parceria com o casca Kleber Magrão), indo da capoeira ao samba.
É chegada a hora da preparação do grand finale. Em off, Luiz Carlos Vasconcelos lê o texto-vinheta de na Boléia da Toyota, o forrock cinematográfico agalopado de Silvério Pessoa. A platéia é convidada a dançar e o galego se despede com os músicos em Coco do M, de Jacinto Silva, devidamente remixado pelo Digital Groove como convém.Chegamos assim, ao fim da viagem da ave música migratória nordestina regional e cibernética e nem sentimos qualquer falta da participação especial dos convidados que gravaram o disco – Lula Queiroga, Lenine, Alceu Valença, Dominguinhos, Genaro e Fabio Trummer, envolvido que estamos desde o início com o roteiro traçado pelo próprio Silvério e pela direção do show de Lula Queiroga e Eric Laurence, com edição instigante de Jeanine Brandão e Natara Ney.
De quebra, nos extras, Silvério nos leva a suas turnês internacionais, onde mostra a alegria de conviver com os músicos e a equipe de viagem, o momento iluminado que está passando e o profissionalismo com o qual foi montado o show, que mostra, em alto e bom som, Pernambuco cantando para o mundo. Ave, saravá, amém.

Um comentário:

Anônimo disse...

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